Confira a entrevista concedida pela Irmã Scalabriniana Maria de Lurdes Lodi Rissini ao Pe. Zé Renato, do Jornal Integração, da Diocese de Santa Cruz do Sul, na edição de outubro de 2022.
Quem é Irmã Maria de Lurdes Lodi Rissini?
Sou Irmã Maria de Lurdes Lodi Rissini, da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo, Scalabrinianas. Nasci em Putinga, filha de Balduino Lodi Rissini e de Orilde Maria Chiesa. Tenho seis irmãos e uma de minhas manas também é Irmã Scalabriniana. Com 13 anos de idade deixei a casa de meus pais e ingressei na Congregação. Fiz meus estudos do Ensino Fundamental no Colégio das Irmãs Scalabrinianas, em Anta Gorda, RS e Casca. Aos 17 anos fui para Passo Fundo, preparando-me para me consagrar a Deus na Vida Religiosa. Aos 20 anos fiz minha profissão religiosa. Segui os estudos de Ensino Médio no Colégio Scalabrini em Guaporé e concluí em Foz do Iguaçu. Enquanto estudava, coordenava a Catequese na Paróquia São José Operário da Itaipu, Foz do Iguaçu, paróquia onde fiz minha profissão perpétua.
Em 1990, fui transferida para Roma, (Itália), onde estudei Catequese Missionária na Universidade Urbaniana. Trabalhei na Conferência Episcopal Italiana por 3 anos, acompanhando os missionários que partiam para o Brasil. Em 1994 segui a viagem para uma nova missão em outro continente, sendo enviada para as Filipinas, onde trabalhei por 7 anos. Enquanto estava nas Filipinas fui convidada pelas Irmãs da Congregação para integrar a equipe de uma pesquisa sobre a migração na Índia.
Em 2001, de volta ao Brasil, estudei Serviço Social na PUCRS e trabalhei com os refugiados colombianos, sob a coordenação do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), através da ASAVI, organização dos Jesuítas em Porto Alegre. Logo após minha formatura em Serviço Social, fui transferida para Guadalajara, Espanha, onde trabalhei na Cáritas e com a Pastoral das Migrações naquela Diocese. Fiz um curso de especialização em Migrações pela Universidade Nacional da Espanha.
Desde 2012 estou morando e trabalhando na África do Sul. Por três anos trabalhei em uma casa de acolhida da Congregação para mulheres e crianças migrantes e refugiadas. De 2015 a 2017 trabalhei na Coordenação da Pastoral das Migrações da Arquidiocese de Joanesburgo, com 120 paróquias. De 2018 até o momento estou trabalhando na Conferência Episcopal da África Austral (SACBC), como Coordenadora Nacional da Cáritas South África e Coordenadora da Pastoral das Migrações da África do Sul, Botswana e Eswatini.
Irmã, fale da sua história pessoal, como surgiu seu interesse missionário.
Cresci em uma família com tradição italiana, que cultivava valores cristãos. Minha mãe foi quem nos iniciou na catequese. Todas as noites, antes de dormir, sentados ao redor dela, nos ensinava a rezar. Com ela aprendi a valorizar a devoção mariana. Meu pai sempre acompanhou e nos apoiou.
Um dia um padre Scalabriniano anunciou que havia um grupo de Irmãs que vinham nos visitar. Uma Irmã chamada Júlia Villa veio e nos contou muitas histórias de Jesus e de pessoas que estavam necessitando de ajuda. Não entendia muito bem o que ela falava, mas lembro que me chamou atenção e disse que eu queria ser uma daquelas pessoas que iria ajudar aos que precisavam. O mais difícil foi convencer minha família a sair de casa, sendo ainda muito jovem. Aos poucos fui convencendo meus pais e eles acreditaram em mim e me deixaram seguir o chamado que sentia. Conheci melhor o significado de seguir Jesus Cristo, vendo-o no rosto do migrante, procurando ser fiel ao carisma que a Igreja nos confia e respondendo aos desafios da mobilidade humana. Me fiz migrante com os migrantes nos 7 países onde trabalhei. A vida missionária e migratória me fez conhecer mais de perto o clamor dos migrantes que devem sair de sua pátria, de aprender outras línguas, de sentir o país que acolhe como seu próprio país. Scalabrini dizia: “para o migrante a pátria é aquela que lhe dá o pão”.
Qual é o carisma da sua congregação?
O Carisma da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo Scalabrinianas, MSCS, é o serviço evangélico e missionário aos migrantes, de preferência junto aos mais pobres e vulneráveis. O carisma nos interpela a viver a acolhida e a solidariedade, a assumir a itinerância apostólica, sendo “migrante com os migrantes” e a testemunhar a comunhão na diversidade. O espírito que anima a Congregação é o da comunhão universal, porque quer tornar visível a vocação de seus membros, de reconhecer, amar e servir a Cristo na pessoa dos migrantes. A Irmã Scalabriniana assume a Pastoral das Migrações que abrange uma grande variedade de ações organizadas, que, muitas vezes, surgem como respostas às numerosas necessidades dos migrantes, sejam elas espirituais, de defesa de seus direitos ou materiais. São ações de apoio e assistência, em todos os sentidos, auxiliando as pessoas a se integrarem nos novos países ou regiões para onde se deslocam. O maior desafio dos migrantes é ter sua própria documentação. Às vezes os países não têm leis que favorecem os migrantes e refugiados a terem uma vida digna. Há muito abuso, escravidão e desrespeito à dignidade humana.
Qual é o rosto da Igreja na África? Como vê a caminhada de fé deste povo, que assumiu o cristianismo?
O rosto da Igreja africana é de defesa da vida, da solidariedade e da esperança. O povo africano é um povo religioso e de muita fé e esperança. Em muitos países vemos que ainda existem guerras e conflitos armados, fazendo com que muitos sejam forçados a migrar ou se refugiar em outros países. A mobilidade humana no continente africano nos chama atenção por continuar crescendo cada vez mais. Vemos o crime do tráfico humano que está presente na maioria dos países. Vemos mulheres corajosas sendo chefes de família e criando seus filhos com poucas condições econômicas. O povo africano é um povo resiliente, que mesmo no sofrimento encontra razões de ser feliz.
Os missionários que vêm de outros países e culturas, aprendem muito com os africanos. Juntos constroem a Igreja que se tornou sólida e que gera novas vocações. A Igreja africana é viva e, através da animação missionária, se torna cada vez mais forte e capaz de levar a boa nova no mundo. A formação de novas lideranças locais faz com que a Igreja continue sendo profética e geradora de novas vocações missionárias. A África está contribuindo com muitos missionários em outros países fora da África, graças aos missionários que aqui vieram e perseveraram na construção de uma Igreja sinodal de comunhão e participação.
Qual é a contribuição da Igreja do RS, da CNBB, na região de Moçambique e arredores?
A contribuição da Igreja do RS e da CNBB no país de Moçambique faz a diferença na vida de muitas pessoas. Temos testemunhos de comunidades onde os missionários brasileiros oportunizaram mais vida e testemunho de fé. Trabalharam na formação de leigos, que em muitas áreas já assumem a animação da comunidade e de projetos. A participação de leigos é uma característica da Igreja africana e muitas comunidades desses países dão testemunho do serviço missionário de muitos homens e mulheres. São catequistas, ministros da Palavra e da Eucaristia, visitadores de famílias e comunidades, agentes de saúde, responsáveis pela economia e até por paróquias. Lembro de ter visitado vários projetos na Zâmbia e vi que as comunidades são organizadas e têm poder de grande transformação. São jovens engajados e também idosos, que cuidam da reconciliação, em caso de brigas, ou que ajudam a decidir o que é melhor para todos. Aqui na África os idosos são respeitados e têm o poder de unir a família. A contribuição dos missionários é de fazer acontecer uma Igreja cada vez mais com rosto africano. O povo é muito agradecido pela presença missionária da Igreja do RS e da CNBB.
Os missionários que aqui chegam, aprendem das comunidades locais a se inculturar. Eles buscam a inculturação na liturgia, nos sacramentos, nos ministérios e até na forma de como se interpreta o conceito de família. Aqui na África também se procura ter um diálogo inter-religioso e com as religiões tradicionais africanas. A Igreja na África tem dado exemplos de que a diversidade e o respeito pelas culturas não implicam em separação. A cultura africana, em geral, conta com o resgate da própria dignidade da pessoa humana na participação e comunhão.
O que tem a nos dizer sobre a realidade da Africa do Sul e a importância da Igreja nesta realidade?
Na África do Sul, a Igreja Católica acabou de celebrar os 200 anos de existência. Ela foi marcada pela presença de muitos missionários provenientes do norte da Europa. O país foi marcado pela generosidade de muitos missionários que contribuíram, acima de tudo, na educação, saúde e na evangelização. Mesmo que a África do Sul não seja um país de predominância católica, a Igreja tem sua participação. Foi profética no período da luta contra o apartheid. A Igreja continua dando respostas aos pobres e necessitados. Hoje temos mais de 35 milhões de desempregados e a corrupção está dominando os partidos políticos. A questão da migração está na agenda para muitos partidos políticos ganharem as eleições. A Conferência Episcopal da África do Sul está se manifestando contra a corrupção e o alto custo de vida, aumentando cada vez mais o número de pobres e marginalizados.
Como exercer nossa vocação missionária, assumida no batismo?
A vocação missionária assumida no batismo é capaz de sair de si mesma para chegar a todos. No nosso caso devemos testemunhar o amor do Senhor na vida e caminhar com os migrantes e refugiados. Toda a mobilidade humana requer uma Igreja de saída e uma Igreja de chegada. A pastoral das migrações deve ser clara e ter uma dinâmica pastoral e missionária, a fim de delinear um novo rosto eclesial da comunhão na diversidade.
“A Igreja em saída” é o que o Papa Francisco deseja ver renascer na Igreja. Uma nova experiência de fé cristã missionária, fundamentada no Evangelho, de modo que a mensagem da salvação chegue realmente a todos, sem exclusão. O papa convida todo o cristão a se coloque a caminho para uma experiência de fé de acordo com o projeto de amor do Pai. Quando recebemos o batismo, somos chamados a viver a vocação missionária, não importa onde estamos. Muitos pensam que para ser missionário/a precisa sair de sua terra. Podemos e devemos ser missionários onde estamos. O importante é assumir nosso compromisso de fé, ter um coração universal e não ter medo de ir ao encontro das pessoas, independente de sua nacionalidade, religião, cor e opinião. Deus nos criou criaturas suas, todos semelhantes, como pessoas humanas.
O que é canonização e quais os passos para uma canonização?
A canonização é o termo utilizado pela Igreja Católica e que diz respeito ao ato de atribuir o estatuto de Santo a alguém que já era Bem-Aventurado. Ser reconhecido santo é um processo sério e complexo dentro da Igreja, a ponto de só poder ser tratado pela Santa Sé, por uma comissão de membros da Igreja e de profissionais leigos, com a aprovação final do Papa. Canonização é a confirmação final da Santa Sé para que um Bem-Aventurado seja declarado Santo. Só o Papa tem a autoridade de conceder o estatuto de Santo.
O Código de Direito Canônico da Igreja, no seu cânon 1186 estabelece: “Para fomentar a santificação do povo de Deus, a Igreja recomenda à veneração peculiar e filial dos fiéis a Bem-aventurada sempre Virgem Maria, Mãe de Deus, que Jesus Cristo constituiu Mãe de todos os homens, e promove o verdadeiro e autêntico culto dos outros Santos, com cujo exemplo os fiéis se edificam e de cuja intercessão se valem”; e, ainda no artigo 1187: “Só é lícito venerar com culto público os servos de Deus, que foram incluídos pela autoridade da Igreja no álbum dos Santos ou Bem-Aventurados”.
O Bem-Aventurado Giovanni Battista Scalabrini, após cumprir todas as regras e rituais prescritos pela Igreja, o papa o declara Santo e entra no catálogo dos santos, concedendo-lhe culto irrestrito. A partir da canonização ele passará a ser um santo reconhecido pela Igreja no mundo inteiro.
Participarei da Canonização e da peregrinação na terra de Scalabrini, juntamente com uma comitiva daqui da África do Sul. Representantes da família Scalabriniana do mundo inteiro estarão presentes na Praça São Pedro, em Roma, dia 09 de outubro de 2022, rezando e agradecendo a Deus por nos ter dado um Santo para proteger cada um de nós, mas acima de tudo os migrantes e refugiados.
Sua palavra para os leitores da Revista Integração
Agradeço à Diocese de Santa Cruz do Sul por me proporcionar esse espaço e poder partilhar minha experiência de fé e de missionária; a paróquia Nossa Senhora da Purificação de Putinga, onde fui batizada e chamada à vida religiosa; ao Santuário São Paulo Apóstolo de Ilópolis, por nos acolher como migrantes e nos apoiar em nossa caminhada. Agradeço à Igreja da CNBB por encorajar e animar os missionários a continuarem firmes e corajosos em qualquer parte do mundo. Rezemos para que mais jovens respondam aos apelos do Senhor e se tornem anunciadores da Boa Nova entre os povos.
Irmã Maria de Lurdes Lodi Rissini